sábado, outubro 20, 2007

O Diabo veste Versace

Texto Originalmente publicado no meu blog "sério" no dia 06/06 de 2006. Isso mesmo, 666, o dia da besta.


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Entro na sala um pouco atrasada. Não foi fácil chegar aqui. Tive que matar 3 bodes e desenhar pentagramas pelo chão. Nunca fui boa em desenho geométrico. Mas, enfim, posso começar minha entrevista.

Nada de corpos pustulentos pendurados na parede, câmaras de tortura, lava borbulhante. Não ouço gritos de dor. Na verdade não ouço nada. Só o barulho do ar condicionado. O tapete felpudo vermelho me faz espirrar. Na parede, uma cruz pendurada de ponta cabeça. Cravejada de cristais Swarovsky. Um sofá forrado de seda preta com almofadas bordadas está no meio do lugar. Eu me sento e espero Ele entrar.

Uma fina névoa púrpura se forma no canto esquerdo da sala. Lá está, o mal em pessoa. Terno risca de giz acinturado, um lenço roxo amarrado no pescoço. Chapéu fedora, de lado. Saltos altos, de verniz vermelho. Grandes olhos negros e brilhantes. Com sombra e rímel. Impecável.

Sua voz é rouca, caminha muito gentilmente em minha direção e pergunta:

- Olá minha criança! Como foi a viagem até aqui?

- Ah, olá... Complicada, mas foi bem, obrigada.

- Notei que não há sangue em suas roupas, parabéns. Aparece cada coisa aqui que você não imagina. É difícil matar bodes sem espirrar na roupa. Você deve ser profissional.

- Ah, mais difícil do que matar foi agüentar o cheiro, eles fedem muito.

- Ai nem me diga. Terrível! Mas queridinha, vamos começar? Por quê está aqui? Pelo mesmo motivo que todo mundo? Veio me pedir algum favor?

- Não, é uma entrevista...

- Como minha cabeça está ruim! Minha secretária me avisou, mas são tantos afazeres que acabei esquecendo. Isso aqui está lotado e tem cada vez mais gente aparecendo para me encher o saco. Povinho decadente...

- Posso começar?

- Oh pode sim, deixe-me servir alguma coisa... Champagne?

- Sim, pode ser.

- Ai bem, esse negócio de vinho não é comigo. Dá dor de cabeça e me lembra o sangue daquele hippie infeliz.

Ligo o gravador. Ele senta-se ao meu lado, cruza as pernas com muita delicadeza. Não posso deixar de comentar:

- Seus sapatos são incríveis!

- Obrigada gracinha!

- Como devo chamá-Lo? Sempre tive dúvidas. Tem algum nome favorito dentre tantos que te deram?

- Olha isso acaba comigo. Me deixa louco. Tantos nomes, e convenhamos, alguns tenebrosos até pra mim. Olha, quem me chama de belzebu eu finjo que nem é comigo. Parece nome de botina de roceiro. Eca. Os brasileiros have the nerve de me chamar de "tinhoso". Ai que povinho ridículo.

- Pois como devo chamá-lo?

- Gino. Adoro esse lance italiano.

- Gino, você é um pouco diferente do que eu imaginava...

- Eu sei fofa. Todo mundo acha que vai encontrar um fisiculturista vermelho de três metros de altura, com rabo, chifres e toda aquela parafernália “satânica”. Mas veja bem, minha intenção não é assustar. O medo não convence ninguém de nada, capisce?

- Imagino que sim. Mas explique isso melhor.

- Todo aquele lance "nas entranhas do inferno", esfolar gente viva, queimar sua carne eternamente, sangue, tripas, melecas everywhere não é para mim. Isso não é atraente de verdade. Posso impor medo nas pessoas, mas o que quero mesmo é que acreditem em mim, nas minhas idéias sabe?

- Então, como é seu purgatório?

- Deserto minha nega. É um desertão assim, tipo a caatinga sabe? Não tem nada pra fazer lá. Aqui tá cheio de gente interessante, por isso eu dividi a categoria. Os chatinhos mongolóides ficam ali no deserto, comendo areia, mijando areia, cagando areia. Pronto. Os mais interessantes ficam no clube privée.

- Clube Privée?

- Assim, que graça tem prometer mundos e fundos, pedir para os homens colaborarem com a minha causa se quando eles chegarem aqui vão ficar chateados comigo? Poxa, eles fizeram tanto por mim, tenho que retribuir. O Diabo aqui não é injusto. Sou cruel, mas sou justo.

- Que “gente bacana” está no clube?

- Só tem gente fofa. Imperadores, artistas, políticos, alguns serial killers... Gente importante e com conteúdo.

- Quem está aqui e eu achava que não estava?

- Como chama aquele rapazinho... John Kennedy.

- Ah?

- Mas ele está lá no deserto com os chatinhos, não gosto dele.

- Por quê?

- Ele é um porre! Não consigo conversar cinco minutos. E tem mais: Ninguém chifra a chiquérrima Jackie. Ninguém, isso é imperdoável. Nem com a Marylin. Que, aliás, está cantando hoje no bar do clube, lindona. Eu desenhei o modelito, tem umas plumas assim...

- Gino, voltando ao assunto: Quem não está aqui e todo mundo acha que está?

- Adolfinho. O Adolf.

- Hã?

- Longa história meu bem. A biba sabe tirar o corpo fora, isso é tudo que eu digo.

- Mas o inferno ao meu ver era pior.

- Olha, o céu pode até ser mais bem localizado... But no fun at all...

- Diversão? Aqui?

- Ai é tudo tão claro quéeerida! Here's the deal: Gente boazinha é trash. Sob todos os aspectos. Se vestem mal, ouvem música ruim, uó total. Têm muito mau-gosto! Tento mostrar a vida boa, glamurosa, mas eles querem ficar ajoelhados olhando pro nada... (cruza as pernas e acende um cigarro)

- Seus sapatos... Sempre usa salto?

- Versace moreco. Eu pessoalmente acho Prada um pouco "senhoura" demais sabe? Salto é poder, chinelinho é coisa de pobre. Tipo assim olhe para mim. Agora olhe para uma beata, uma crente. O que são aqueles cabelos? O que são aqueles cabeeeelossss? Terrible. E tenho uma palavra para você queridinha: Jérsey. Quer me manter longe? Jérsey florido faz o trabalho. Muito pior que exorcismo. Ai que horror!

(risos escandalosos).

- É se vestem mal... Mas isso faz delas pessoas tolas?

- Elas compram sapatos em saldão! Socorro! O que falar mais destas pessoas? Compram sapato em saldão e gostam do barbudinho seboso. Nem preciso dizer mais nada.

- É suspeito mesmo.

- Sapatos de corino, napa! E gente de batinha branca! Isso não pode! Não, no, non mon cherie!

(se serve de mais champagne)

- Hoje é o seu dia. Seis, seis, seis. O dia da Besta.

- Besta? QUE BESTA?

- Não, calma, desculpe Gino.

- Esses nomes ainda vão acabar comigo...

- Hoje é o seu dia! Como se sente?

- Tristinho. E eu digo porquê. Vocês me tratam muito mal. Até os que supostamente gostam de mim. Essas músicas barulhentas e de mau-gosto. Black Metal? Eca! Insistem em me chamar de Besta. Os tais satanistas são uns ridículos. Cabelos desgrenhados, roupas pretas e fedidas, coturnos... Malditos sejam os coturnos! Aparecem aqui com aquelas maquiagens malfeitas, delineador todo borrado. Chegam aqui me chamando de mestre, eu falo "Pare de comprar roupa no Wal Mart meus amores" mas eles não ouvem. Sou mestre de quê então?

- Mas eles gostam de você!

- Ah vá! Acendem um monte de velas pretas, ouvem músicas cavernosas, compram vinho Chapinha e me chamam pra festa. Sabe quando eu apareço? Nunca. Nunquinha. Coisa mais pobre.

- Então você não gosta de satanistas?

- Eles fazem tudo errado. Eu sei que isso é provação. É o meu castigo.

- Castigo? Pelo o que fez com Deus?

- O que eu fiz? Oh! Eu fiz o que fiz porque tudo era chato. Resolvi redecorar lá em cima, gastei cartão de crédito do papi, brigava com aqueles tontos o tempo todo. Eu queria sair, ver o mundo, brilhar, brilhar, brilhar! Eles me seguravam, não respeitavam minhas escolhas. Eu tinha que usar branco! O tempo todo! Me tiraram de casa. Eu sou aquele tipo de pessoa que tem que segurar o perucão sabe? Subi no salto e saí andando, pra nunca mais voltar. Aí papai fez aquele hippie, barbudo e de chinelos. O look mais piegas que papis pode conceber. E eu sei que foi pra me irritar.

- Não duvido. Tem alguma coisa que fizeram para você lá na Terra que você considera válida?

- Uma meia dúzia de livros, umas quatro musiquinhas e umas frases pra camiseta. Tem uma da Dolce Gabanna que eu piro: está escrito "Devil" na frente e "Lived" atrás, tudo bordado em brilhantes. Lindo!

- Eu digo a humanidade. O que a humanidade fez que você adorou?

- Ah sim. Deixa eu ver... A luxúria eu diria. É o pecado que leva a quase todos os outros. Pode ter certeza.

- Uma música para encerrar a entrevista. Qual a sua favorita?

- "Simpathy for the Devil" é fofa, mas eu devo dizer "Strange Fruit" da Billie Holiday. É classuda e cruel. Just like me!

- Gino, obrigada pelas respostas, mas meu tempo aqui acabou.

- Ah, eu sempre me esqueço. Obrigada você pela visita fofinha. Da próxima vez, esqueça os bodes e os pentagramas. Compre uma bolsa Chanel, acenda umas velas aromáticas, me ofereça champagne decente, chame meu nome que eu apareço tá?

- Tá bem. Te chamo por Gino?

- Isso linda.

- Okay, pode deixar.

- Beijinho.

E Gino sai pela porta caminhando delicadamente sobre seus stilettos Versace.

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